O kungfu (功夫, gōngfu) sempre sofreu variações no decorrer de sua história, através do tempo, das transformações culturais e também pelos próprios mestres que contribuíram diretamente no seu desenvolvimento. Desde a antiguidade sua prática nunca foi uniforme e isto resultou numa variação muito grande de estilos. Cada um dos estilos existentes possui sua própria história, princípios e técnicas específicas. Apesar de fazer parte da herança cultural do povo chinês, o kungfu, mesmo presente no seu cotidiano, possui sua origem distante no tempo. Não há, portanto, uma precisão real e nem tudo é baseado nos registros históricos da China (中國, Zhōngguó) antiga. Sabe-se que o mosteiro de Shaolin (少林寺, Shàolín sì) sofreu três grandes incêndios, sendo que durante o último, em especial, muitos documentos valiosos foram perdidos. Pelo menos, nesse mesmo período, centros de ensino de kungfu já haviam se espalhado pelo Norte e também Sul da China. Em 1910, foi fundada a associação Jīngwǔ (精武) em Xangai (上海, Shànghǎi) e logo a seguir, a Escola Central de Guoshu (中央國術館, Zhōngyāng guóshù guǎn). Foram os dois principais centros de difusão da arte marcial chinesa, sendo que nossa escola apresenta currículo tanto de Jīngwǔ, como da Academia Central (principalmente). Nela, reuniram-se os cinco maiores expoentes do norte da China, entre eles Gù Rǔzhāng (顧汝章), e posteriormente os melhores professores de estilos do Sul. A partir da proclamação da República Popular da China (1949, 中華人民共和國, Zhōnghuá rénmín gònghéguó), houve um forte movimento de emigração de mestres chineses para Taiwan (臺灣, Táiwān) e Hong Kong (香港, Xiānggǎng).

Hong Kong foi também o destino do nosso mestre Chan Kowk Wai (陳國偉) onde aprendeu e desenvolveu a maioria dos estilos que ensina hoje. Por ter aprendido com os principais mestres de sua época, nossa escola tornou-se extremamente rica na mais tradicional arte marcial chinesa, sendo fielmente preservada até hoje. Além do Shaolin do Norte, das duas ramificações de Càilǐfó e dos estilos internos (Tàijíquán, 揚式太極拳; Bāguàzhǎng, 八卦掌; Xíngyì, 形意; Bājí 八極 e Liǎngyí, 兩儀), no Sistema Sino-Brasileiro de Kungfu são ensinados ainda, mais seis estilos, descritos de forma resumida, a seguir:

 

A origem deste sistema, que está ligado diretamente com o monastério de Shaolin é creditada a Dámó (達摩, Bodidarma). Diz-se que esse monge indiano esteve em Shaolin após peregrinar pela China, ensinando o budismo. Dámó desenvolveu uma nova filosofia tendo como base o budismo, mas com fortes influências do taoísmo: o Chán (禪). Com o passar do tempo, essa nova filosofia se tornou a base de todos os estilos de kungfu de Shaolin. Quase todo seu princípio é baseado na meditação sentado, sendo que os monges não aguentavam ficar nessa posição por longos períodos, necessitando de exercícios físicos para se recompor. Conta-se, numa linguagem figurada, que o próprio Dámó sentou-se em meditação defronte a um muro do templo durante nove anos. Com base em seus conhecimentos marciais e medicinais, Dámó criou um sistema de condicionamento físico que se demonstrou não sendo o suficiente. As agressões de arruaceiros e bandidos não permitiam que os ensinamentos de Dámó fossem transmitidos. Sentindo que a própria sobrevivência do templo estava ameaçada e com base em seus conhecimentos marciais, Dámó criou uma guarda de segurança que foram posteriormente denominados de “os 18 Luóhàn (十八羅漢, Shíbā Luóhàn)”. Essa guarda era composta por monges especialmente recrutados e treinados nas mais avançadas técnicas marciais existentes no templo. O estilo Luóhàn (羅漢) foi ensinado apenas a monges especialmente selecionados e apenas os melhores, com caráter íntegro e inabalável, tinham a oportunidade de estudar esse sistema de combate. Era praticado apenas pelos monges responsáveis pela proteção do mosteiro. Luóhàn se traduz para Arhat (em sânscrito: dignos e merecedores, ser de elevada estatura espiritual e que merece louvores divinos). Assim foi do século VI ao século XVI. Somente a partir daí, é que leigos sem vínculo com o mosteiro passaram a serem instruídos nesse estilo e assim mesmo, em número bastante reduzido. O estilo Luóhàn possui posições bem características, possuindo os movimentos de ataque e defesa muito rápidos, objetivos e precisos, exigindo muita flexibilidade e força de quem o pratica. Profundamente influenciado pelo Chán budismo, o estilo Luóhàn enfatiza as técnicas de defesa, sendo que a violência nunca é incentivada. Mestre Chan Kowk Wai pertence à genealogia direta do templo de Shaolin, derivando de Sūn Yùfēng (孫玉峰), um dos poucos mestres de Shaolin que ensinaram esse estilo abertamente, aprendendo o estilo de Mǎ Jiànfēng (馬劍風, Ma Kin Fong numa grafia mais conhecida) em Hong Hong.

 

 

O estilo Garra de Águia (鷹爪番子, Yīngzhǎo Fānzi) é o resultado da união de dois antigos estilos de kungfu: o Fānzi Quán (番子拳), sistema originário de Shaolin (少林, Shàolín) cujos primeiros registros vêm do início da dinastia Míng (明朝, Míng Cháo; 1368 – 1644) e o sistema Garra de Águia, que tem sua origem atribuída a Yuè Fēi (岳飛; 1103 – 1142), famoso general da dinastia Sòng (宋朝, Sòng Cháo; 960 – 1279 d.C.). Criado por Lì Quánsēng (麗泉僧) em 1149 aproximadamente, o estilo Yīngzhǎo Fānzi tem no seu nome uma referência à águia por sugerir que seus movimentos imitam a agilidade, força e precisão desse pássaro. Possui técnicas elaboradas de torções, imobilizações, estrangulamentos, chaves e agarramentos em pontos de pressão, sempre visando pontos vulneráveis do corpo humano. Seu treinamento é específico para o desenvolvimento de força das mãos e dos braços buscando imobilizar o adversário com o menor dispêndio energético possível. Além do completo sistema de qínná (擒拿), o estilo Garra de Águia ainda possui uma grande diversidade de chutes. Mestre Chan Kowk Wai aprendeu o estilo de Zhāng Zhànwén (張占文) em Guǎngzhōu.

 

 

Tal qual a maioria dos estilos antigos, a origem do sistema Louva-a-deus de kungfu (螳螂, Tángláng) não é bem documentada e fatos se misturam com lendas e tradições orais. Dentre as versões existentes, o mais comum é creditar a origem do estilo Tángláng a Wáng Lǎng (王朗), por volta de 1600, próximo ao fim da dinastia Míng (明朝, Míng Cháo). De família abastada, Wáng Lǎng teria sido um nativo da província de Shāndōng (山東), aonde aprendeu o kungfu num templo daoísta local. Seguindo o conselho de seu mestre, viajou pela China a fim de melhorar suas habilidades marciais duelando com diversos lutadores até chegar ao Templo Shaolin (少林寺, Shàolín sì) aonde veio a aprender alguns estilos. Após perder um combate para o que seria o melhor lutador do mosteiro, Wáng Lǎng buscou de qualquer forma melhorar suas técnicas de combate. Ainda transtornado com o acontecido e durante um momento de distração durante sua meditação, Wáng Lǎng ficou impressionado ao observar o combate entre uma cigarra e um louva-a-deus. Perplexo com a súbita vitória do louva-a-deus que aparentemente era muito mais frágil que a cigarra, passou a estudar os movimentos do inseto repetindo-os sistematicamente e adaptando-os para um combate real. Após estudar e sintetizar os métodos de caça e luta do louva-a-deus, Wáng Lǎng formulou um novo estilo baseado em doze princípios conhecidos como as “doze palavras secretas” (十二字訣, shí èr zì jué). A lenda conta que após dominar o sistema que havia desenvolvido, conseguiu derrotar posteriormente o mestre de Shaolin que o havia derrotado em combate e a convite de Fújū (福居), abade do templo na época, chegou a lecionar kungfu no intuito de refinar as artes marciais já ensinadas no templo de Shaolin. Mais tarde, Wáng Lǎng retornou a Shāndōng onde passou a viver num templo daoísta nas montanhas Láoshān (嶗山), período aonde passou a se dedicar ao ensino do seu estilo, possuindo dois alunos principais que seriam Shēng Xiāo Dàoren (升霄道人) e Yǔ Zhòu Dàoren (宇宙道人), responsáveis pelas duas escolas mais antigas de Louva-a-Deus: a 7 Estrelas (七星螳螂拳, Qīxīng Tángláng quán) e Flor de Ameixeira (梅花螳螂拳, Méihuā Tángláng quán).  O Louva-a-deus é um estilo típico do norte da China e que se tornou muito popular e difundido em todo o mundo. Mantém as características agressivas do inseto possuindo golpes contundentes e precisos, deferidos de forma rápida e na maioria das vezes a curta distância, utilizando socos, chutes e cotoveladas, que invariavelmente tendem a projetar o adversário ao solo. A mão, em muitos movimentos, assume a forma de pinça aonde os dedos polegares e indicadores se unem, possibilitando ataques em pontos precisos. É um estilo muito eficiente por sua praticidade e objetividade dos movimentos. O estilo Louva-a-deus da linhagem “sete estrelas” foi transmitido ao mestre Chan Kowk Wai pelo “rei do Louva-a-deus”, o grande mestre Huáng Hànxūn (黃漢勛), autor de vários livros sobre o estilo e muito famoso por sua habilidade no kungfu. Huáng Hànxūn foi aluno de Luó Guāngyù (羅光玉) na associação atlética Jīngwǔ (精武體育會, Jīngwǔ tǐyù huì) em Hong Kong. Conhecido pela alcunha de o “4° Mestre”, foi considerado o mais importante do estilo Louva-a-deus de sua época e de quem o Mestre Chan também teve a oportunidade de aprender. As “sete estrelas” que denominam o estilo é uma referência as sete partes do corpo que são utilizadas em harmonia durante uma luta: cabeça, ombro, braço, mãos, quadril, joelhos e pés.

 

Mestre Chan Kowk Wai executando a forma do estilo

Louva-a-deus (七星螳螂, Qīxīng Tángláng)

 

Estilo criado dentro do mosteiro de Shaolin (少林寺, Shàolín sì), o Liùhé (六合, Lo Hap) é também conhecido como “Seis Harmonias”. Seu princípio fundamental é baseado na sequência de seis movimentos encadeados dentro de uma sequência maior. Suas sequências de ataque objetivam as combinações perfeitas, as chamadas “Seis Harmonias”, responsáveis diretas pela boa fluência do kungfu de quem a pratica. Consistem em três sintonias externas (外三合, wài sān hé) contidas entre ombros unificados com o quadril (肩與胯合, jiān yǔ kuà hé), cotovelos com joelhos (肘與膝合, zhǒu yǔ xī hé) e a união entre as mãos e os pés (手與足合, shǒu yǔ zú hé); e três sintonias internas (內三合, nèi sān hé) aonde o coração é unificado com a intenção (心與意合, xīn yǔ yì hé), a intenção é unificada com o qì (意與氣合, yì yǔ qì hé), e por fim, o qì é unificado com a força (氣與力合, qì yǔ lì hé). O alinhamento perfeito das articulações do punho, cotovelo, ombro, tornozelo, joelho e quadril é fundamental para que o golpe atinja sua máxima potência. O Liùhé é um estilo muito poderoso com uma grande variedade de movimentos de ataques e contra-ataques, caracterizado pelo uso de movimentos fortes onde se alterna técnicas de chutes e socos. Mestre Chan Kowk Wai aprendeu o estilo de Yán Shàngwǔ , que aprendeu diretamente de Wàn Làishēng (萬籟聲), que também lhe ensinou o estilo Zìrán mén (自然門).

 

Mestre Wàn Làishēng (萬籟聲)


 

O estilo Tántuǐ (潭腿) consiste numa série de exercícios de condicionamento físico, executado por boa parte dos estilos de kungfu (功夫, gōngfu). Ainda que exista uma série original dividida em doze partes, cada estilo de kungfu adaptou os fundamentos do Tántuǐ às suas próprias necessidades. Baseado principalmente em movimentos de pernas, o Tántuǐ também faz grande uso da respiração e de movimentos de braços. Sua origem está enraizada no noroeste da China (中國, Zhōngguó), em território ocupado principalmente por muçulmanos: Hénán (河南), Héběi (河北), Shāndōng (山東) e Shānxī (山西). Sua origem é creditada a Chá Shàngyì (查尚义, também conhecido como Chá Mìěr, 查密爾; 1568-1644 d.C.) que inicialmente passou o estilo apenas a alguns poucos aldeões, iniciando assim a propagação do Tántuǐ. Conta-se que a forma original do estilo continha vinte e oito movimentos, sendo que sua ordem tinha como base as letras do alfabeto árabe. Posteriormente foi abreviado para dez e já em Shaolin, foi transposto para as doze partes definitivas. O Tántuǐ deve ser praticado de forma enérgica, com vigor e vitalidade. Sua forma enfatiza as técnicas básicas do kungfu, como os chutes e socos básicos, equilíbrio, flexibilidade e força. Entre os benefícios de sua prática regular, podemos citar a melhora da postura, o fortalecimento dos membros inferiores, a melhora da respiração, o aumento da concentração e o consequente desenvolvimento da psicomotricidade. Suas principais características são os chutes fortes abaixo da cintura, os socos simultâneos e o seu deslocamento linear. O Tántuǐ é um estilo rico em técnicas marciais e sua prática constante promove a saúde seguindo os princípios da Medicina Tradicional Chinesa. Mestre Chan Kowk Wai aprendeu o estilo de seu mestre Yán Shàngwǔ (嚴尚武) que herdou as técnicas de Gù Rǔzhāng (顧汝章), que por sua vez aprendeu de seu pai, Gù Lìzhī (顧利之), um renomado mestre do estilo Tántuǐ. Mestre Chan ensina tanto a forma de 12 movimentos (十二路潭腿拳, Shíèr lù Tántuǐ quán), quanto a de 10 movimentos (十路彈腿拳, Shí Lù Tántuǐ quán).

 

 

O estilo Chá Quán (查拳) é proveniente da província de Shāndōng (山東) e consiste num dos sistemas de luta mais antigos do norte da China e que teria inspirado o Cháng Quán (長拳; rotina de wǔshù (武術) contemporâneo). De origem muçulmana (etnia Huí; 回族, Huí zú), o estilo foi desenvolvido no período da dinastia Táng (唐朝, Táng Cháo; 618 – 907), por intermédio de dois mestres: Huá Hōngqí (滑宗岐) e Chá Shàngyì (查尚义) que posteriormente passaram a ensinar esse sistema aos muçulmanos em Shāndōng. Possui movimentos ágeis e harmoniosos, com ataques contínuos e rítmicos que usam ambas as mãos e pés. Mestre Chan Kowk Wai (陳國偉) aprendeu o estilo de Yán Shàngwǔ (嚴尚武).

Há ainda dentro do currículo de nossa escola diversos outros katis (架子, Jiàzi) que normalmente não são descritos na nossa genealogia, mas que são ensinados comumente. Entre eles, destacam-se os seguintes: Serpente (蛇形拳, Shé xíng Quán), Bêbado (醉八仙拳, Zuì Bāxiān Quán), Macaco (猴形拳, Hóu xíng Quán), Garça (鶴形拳, Hè xíng Quán), espada de Wǔdāng (武當太乙劍, Wǔdāng Tàiyǐ jiàn) e bastão vara de pescador de Hóngjiā Quán (洪家拳, 六點半釣魚棍; Hóngjiā Quán, Liùdiǎn Bàn Diàoyú Gùn), entre tantos outros.

 

Mestre Chan Kowk Wai: Serpente, espada de Wǔdāng e Macaco

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